A legalidade das deepfakes e a proteção de dados (2024)

Deepfake é uma nova modalidade de fake news (desinformação) criada a partir da deep learning (categoria de inteligência artificial), que manipula conteúdo audiovisual a partir da inserção de imagens e/ou voz de um indivíduo que não integra a obra original[1], com a explícita finalidade de gerar distorções na realidade, tendo em vista que, embora seja verossímil, o conteúdo da deepfake é falso e pode ser relevante ao interesse público[2].

O seu uso tem sido bastante vasto e a técnica deepfake tem se tornado cada vez mais comum na nossa sociedade em rede[3], lastreada também pelo compartilhamento desenfreado de informações sem verificação de autenticidade e o tratamento massivo de dados pessoais, com repercussões éticas e sociais[4]. Deste modo, faz-se necessário analisar, ainda que brevemente, a legalidade das deepfakes à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018) e da tutela dos direitos da personalidade, especialmente os artigos 17 e 20 do Código Civil (Lei n.10.406/02).

O cerne da prática pode ser identificado como ambivalente, no que tange à manipulação dos direitos da personalidade, com ênfase nas relações do direito à imagem-retrato e imagem-atributo; e, por outro lado, nas questões relativas à proteção de dados pessoais sensíveis como voz e imagem em fotografia, tendo as questões autorais e criminais de ser analisadas à parte. É daí que, especificamente às deepfakes, poder-se-ia sustentar, a priori, a sua legalidade, posto que esta atividade manipulativa das expressões dos direitos da personalidade na perspectiva da imagem-retrato e imagem-atributo subsumir-se-ia à disponibilidade relativa de tais direitos[5]. Assim, sustentamos que, como relativamente intransmissíveis e irrenunciáveis que são, o uso e a manipulação por outrem dos direitos de personalidade de alguém em deepfakes pode ser feito, desde que ocorra autorização prévia e inexista finalidade ilícita ao conteúdo falso a ser criado.

É de se observar que esta autorização prévia será relativizada apenas nas hipóteses de tratar-se de expressões de direitos de personalidade de pessoas públicas – dada a mitigação que estes possuem no que tange à reprodução dos seus direitos de imagem. Porém, em qualquer caso, seria defesa a prática de deepfakes com finalidade única ou eminentemente comercial, seja de pessoas físicas públicas ou não, unicamente sendo esta possível se possuir um viés sarcástico-humorístico e sem fim danoso. Sob a ótica da tutela dos direitos da personalidade, o artigo 20[6] do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) prevê que, a requerimento do interessado, poderá ser proibida qualquer exposição ou utilização indevida da imagem de indivíduo, em clara reverberação da inviolabilidade do direito à imagem, conforme previsto no artigo 5º, X, da Constituição Federal de 1988. Aliado a isso, o artigo 17 do Código Civil dispõe que o nome da pessoa não pode ser empregado em representações que o exponham ao desprezo público, de modo que a legalidade da deepfake está sujeita a essas condições essenciais.

No que tange à proteção dos dados sensíveis como imagem e voz, o artigo 2º, IV, da Lei Geral de Proteção de Dados reforça a tutela constitucional de inviolabilidade dos direitos à honra e à imagem sob a ótica da proteção de dados, de modo que a elaboração de deepfake deverá ser procedida em consonância com esses baluartes para o processamento e reprodução de dados pessoais sensíveis de imagem pessoal e voz.

Dito de outro modo, sob o viés da Lei Geral de Proteção de Dados, o tratamento de imagem e voz para a criação de deepfake somente poderá ocorrer de acordo com uma das hipóteses previstas no artigo 7º, tais como, com o consentimento do indivíduo titular do dado, para o cumprimento de obrigação legal, para a proteção da vida etc.

Diante desse contexto, apresentamos alguns dos requisitos essenciais à legalidade das deepfakes nos âmbitos dos direitos da personalidade e da proteção de dados do indivíduo, titular dos dados pessoais sensíveis expostos nessa obra distorcida. Deste modo, caso não haja o atendimento aos critérios acima expostos, poder-se-á incorrer em elaboração de deepfake ilegal, em nítida violação dos direitos do indivíduo exposto.

[1] AFFONSO, Carlos. Tecnologia abre novo capítulo na manipulação de vídeos; imagina na eleição. 2019. Disponível em: <https://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2019/05/28/tecnologia-abre-novo-capitulo-na-manipulacao-de-videos-imagina-na-eleicao/>. Acesso em: 20 set. 2019.

[2] MARAS, Marie-Helen; Alex Alexandrou. Determining authenticity of video evidence in the age

of artificial intelligence and in the wake of Deepfake vídeos. In: The International Journal of Evidence and Proof, Thousand Oaks, v. 30, out, 2018, p. 1-8; FLORIDI, Luciano. Artificial Intelligence, Deepfakes and a Future of Ectypes. In: Journal Philosophy & Technology, v. 31, set., 2018, p. 317-231

[3] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: do conhecimento à política. A sociedade em rede. Do conhecimento à acção política. Debates–Presidência da República. Lisboa: Imprensa Nacional, 2005, p. 17-30.

[4] HWANG, Tim. A vote against deepfakes. In: Journal New Scientist, Londres, v. 239, 11 de ago, 2018, p. 22-23; Jury Tech. Deepfakes, social media, and celebrities: a technology for the combination of fake and deep learning used for swapping faces of people in a video. Chino Hills: Gilob Publishing House, 2018, p. 3 e ss.

[5] CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, passim; COLOMBO, Cristiano; Facchini Neto, Eugênio. Violação dos direitos de personalidade no meio ambiente digital: a influência da jurisprudência europeia na fixação da jurisdição/competência dos tribunais brasileiros. In: Civilistica.com: Revista Eletrônica De Direito Civil, vol. 8(1), 2019, p. 1-25; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: Teoria Geral. 3. ed. Rio da Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 105 e ss.

[6] Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais (grifos nossos).

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A legalidade das deepfakes e a proteção de dados (2024)

FAQs

Por que deepfake é uma ameaça? ›

Elas podem representar uma ameaça à privacidade e à segurança de empresas e indivíduos, além de serem usadas para diversos fins maliciosos, incluindo golpes de phishing, roubo de identidade e ataques automatizados de desinformação como fake news.

Quais são os perigos da deepfake? ›

Os vídeos deepfake sincronizam diálogos na boca das vítimas e são usados para prejudicar a reputação das pessoas ou até mesmo para chantageá-las.

Como a deepfake pode impactar nas relações sociais? ›

A proliferação da Deepfake pode gerar polarização, conflitos e até mesmo afetar processos democráticos, uma vez que as pessoas podem ser levadas a tomar decisões com base em informações incorretas (LIMA, 2020).

O que fazer para acabar com a deepfake? ›

Uma forma de desacreditar uma deepfake é usar ferramentas e plataformas disponíveis para verificar a autenticidade do conteúdo digital. Por exemplo, a Content Authenticity Initiative oferece recursos on-line valiosos, incluindo uma ferramenta onde se pode enviar conteúdo para revisão.

É crime fazer deepfake? ›

Ele entraria como uma agravante do crime previsto no artigo 147-B do Código Penal, que teria o parágrafo assim: “a pena é aumentada de metade se o crime é cometido mediante uso de inteligência artificial ou de qualquer outro recurso tecnológico que altere imagem ou som da vítima”.

Como a deepfake pode ser identificada? ›

Além desses e de outros softwares, é possível também identificar deepfakes com um olhar mais atento e buscando outras fontes de informação. Nos vídeos, por exemplo, é possível notar alguns defeitos, mesmo que discretos, como: falta de sincronização dos lábios com a fala. movimentos incomuns do piscar de olhos.

Qual é o propósito dos deepfakes? ›

Deepfake é uma técnica que permite alterar um vídeo ou foto com ajuda de inteligência artificial (IA). Com ele, por exemplo, o rosto da pessoa que está em cena pode ser trocado pelo de outra; ou aquilo que a pessoa fala pode ser modificado. Isso é possível com o uso de aplicativos criados com essa finalidade.

Quais são os impactos da manipulação digital? ›

Disseminação de informações falsas; Difamação de uma figura pública atribuindo-a a uma situação ou discurso negativo; Exposição desnecessária de pessoas em situações constrangedoras e inusitadas; Desencadear fraudes e chantagens.

Quais os tipos de Deep fake existentes? ›

Quais são os tipos de deepfake?
  • Deepfake de texto. O deepfake de texto é uma fraude que simula o texto escrito por uma pessoa real para fingir que é verdadeiro. ...
  • Deepfake de redes sociais. O deepfake de redes sociais abrange a criação de perfis falsos nessas mídias. ...
  • Deepfake de voz. ...
  • Deepfake de vídeo. ...
  • Deepfake em tempo real.
Mar 28, 2024

Quais são as consequências de compartilhar um deepfake? ›

A vítima de deepfake pode começar a duvidar da autenticidade de todas as interações online, criando uma atmosfera de desconfiança constante em seu cotidiano. Isso pode levar a uma redução na socialização em ambientes online que a pessoa costumava interagir, limitando sua liberdade e expressão digital.

Quais os benefícios da deepfake? ›

Entre esses avanços está o desenvolvimento do deepfake, uma técnica de manipulação de mídia baseada em inteligência artificial. O deepfake permite criar vídeos e imagens falsas com um nível de realismo impressionante, levantando questões éticas e sociais importantes.

O que é deepfake E a manipulação? ›

Resumo: Os deepfakes, uma tecnologia de manipulação de mídia que utiliza inteligência artificial para criar vídeos falsos convincentes, estão cada vez mais presentes em nosso cenário digital. Embora ofereçam inúmeras possibilidades criativas, os deepfakes também apresentam sérias implicações legais e éticas.

Porque deepfake é uma ameaça? ›

O deepfake representa um risco significativo para empresas devido ao seu potencial de causar danos substanciais em diversos aspectos-chave da operação empresarial. Essa tecnologia avançada de Inteligência Artificial pode criar conteúdo multimídia falso e aparentemente autêntico, a ponto de enganar usuários desavisados.

Quem inventou o deepfake? ›

O primeiro caso registrado de deepfake foi em 2017, quando um usuário do Reddit sob o pseudônimo "Deepfakes" publicou vários vídeos de caráter p*rnográficos na Internet. O primeiro a chamar mais atenção foi o vídeo de Daisy Ridley, atriz de vários filmes renomados como Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força.

Qual a tradução de deepfake? ›

A palavra deepfake é um termo composto por duas expressões em inglês: deep learning e fake. Deep learning, traduzido para o português, seria algo como “aprendizado profundo”. Fake, em uma tradução literal para o português, é “falso”, indicando que o aprendizado profundo tem como objetivo produzir algo falso.

Quais as consequências das fake? ›

Quais as consequências de divulgar fake news? Uma notícia falsa, por mais ingênua que possa parecer, é sempre prejudicial, pois induz ao erro e contribui para a desinformação da população. Além disso, as fake news interferem na ação, na tomada de decisão e até mesmo no posicionamento político das pessoas.

Para que foi criado o deepfake? ›

Deepfake é uma técnica que permite alterar um vídeo ou foto com ajuda de inteligência artificial (IA). Com ele, por exemplo, o rosto da pessoa que está em cena pode ser trocado pelo de outra; ou aquilo que a pessoa fala pode ser modificado. Isso é possível com o uso de aplicativos criados com essa finalidade.

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